quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Pipoca


A culinária me fascina. 

De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. 
Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.
Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. 
Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária literária".

 Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: 
cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.
Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro
poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette 
que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. 
Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. 
Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas.
Provocam a minha capacidade de sonhar.

Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. 
Pois foi precisamente isso que aconteceu.
A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. 
Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. 
E algo inesperado na minha mente aconteceu. 
Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. 

Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. 
Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.
A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. 
Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. 

Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. 
A pipoca tem sentido religioso? 
Pois tem.
Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). 
Pão e vinho devem ser bebidos juntos. 
Vida e alegria devem existir juntas.
Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.
Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas.
Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. 

Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.
Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. 
O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.
Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. 
Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. 
O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. 
É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? 
É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. 
O milho da pipoca não é o que deve ser. 
Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. 
O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! 

Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.
Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.
Assim acontece com a gente.
As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. 
Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. 
São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. 
Só que elas não percebem. 
Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.
Mas, de repente, vem o fogo. 
O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. 
Dor. 
Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos.
Há sempre o recurso aos remédios. 
Apagar o fogo. 
Sem fogo o sofrimento diminui. 
E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. 
De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. 
Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. 
A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. 
Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. 
É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. 
É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.
"Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. 
Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. 
Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. 
Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. 
Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. 
Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. 
Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. 
Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" 
Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. 
Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.
Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á".
A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. 

O destino delas é triste. 
Vão ficar duras a vida inteira. 
Não vão se transformar na flor branca macia. 
Não vão dar alegria para ninguém. 
Terminado o estouro alegre da pipoca, 
no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. 
Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, 
são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...
"Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. 
Pois foi precisamente isso que aconteceu".

 Rubem Alves - A Pipoca -


















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